23 de julho de 2009

Autocomiseração

Nunca vi
nada selvagem com pena de si.
Cai de um galho um passarinho
morto de frio sem que nunca tivesse
pena de si.



SELF-PITY

I never saw a wild thing
sorry for itself.
A small bird will drop frozen dead from a bough
without ever having felt sorry for itself.


______
LAWRENCE, D. H. The complete poems. Ware: Wordsworth, 2002. p. 382.

13 de julho de 2009


a Ana


No ocaso do teu
sono (alva da tua pupila)
o meu dia amanhece.

9 de junho de 2009

Quem


Dente com dente, trincados
no freio da muda angústia,
completou de tudo em torno
milhões e milhões de voltas
no desvario de um passo
a passo submetido.

E no equilíbrio precário
de sua noite quadrúpede,
sonha em rasgar com os cascos
a caverna mais profunda
pra zurrar em pleno breu
sobre tudo que perdeu.
Quem?
         Essa besta! Essa mula!

19 de maio de 2009

Em Pompeia


Soterrado muro
pela lava agora dura
do fúmeo Vesúvio

cala esse grave grafite:
"nada dura para sempre".

27 de abril de 2009


Te descubro, esquecido poema
(vox clamantis in deserto),
te cubro então com areia
para poder passar por perto.

9 de abril de 2009


Guarda a turva moça,
fria face à chuva e à poça,
um arco-sorrires.

18 de março de 2009

Meu amor

            a Ana

Ele vem pela areia que é pó das estrelas.
Vem de outrora, por dunas remotas. O ventre
é promessa, seu canto uma dádiva esplêndida
e seu corpo uma fome: saudade de tudo
que a manhã vai trazer com suas mãos de alvorada.

9 de março de 2009


Não me creio Deus
porque os peixes boiam bestas
no alheamento vítreo.

7 de março de 2009


Na era que vem
o ego será suplantado.
Vai sobrar alguém?

4 de março de 2009


Não há tato no
gesto, atavio no fato,
frescura no ato.

2 de março de 2009

A quatro mãos


aqui
manuscrita
a mão (cheia)
de d
     eus
     d
     o
     seus

28 de fevereiro de 2009

Análise

palma ao sol a mão rubra 
despe o véu da retina 
mostra o sangue a hemácia 
mostra a hemoglobina 
mostra a hemácia o sangue 
a própria mão uma amostra 
humana – não é minha

27 de fevereiro de 2009


por tudo obrigado
de nada e antes de mais
nada um obrigado

Recorta a palavra
na folha a máscara para
encaixar sua cara.

25 de fevereiro de 2009

Paisagem


Desliza a década
na cara de pedra
inabalável do morro
envolto no longo
véu de bruma e sonho
sob o gris perpétuo
do céu silente e oco

mas pressente-se quando perto
em toda pétrea ruga ao relento
toda vária fenda e greta
o inesperado acocorado
pronto para o bote
o banquete
a festa

20 de fevereiro de 2009

Verde mundo


o verde brada lento
falange rebento da terra bicho mastiga bicho mastiga bicho
chia guincha pia brota e se esfarela
a vida sepulta a vida no humo
calado gemido no barro
ave em revoada mosquitada
venta adeja a borboleta a pétala
estala o tronco o espaço e chora chove

Chamado nenhum escuto
de nenhuma destas selvas.
Vaguei demais e dei longe;
nada mais me reconhece.
Que o rio me lave e leve
e a carcaça fundo enterre
no miolo imundo e escuro
onde sequer resta um verme.
Ainda assim, continuo:

mundo verde:
verde mundo.

na terra o verme
na fruta o verme
na tripa o verme
no osso o verme
no espelho o ver-me

14 de fevereiro de 2009

Soneto 8

escorre o tempo e dos espaços
traz pras poças uma miríade
de pingos a repercutir
nos pátios os perdidos passos

das multidões que já o pisaram
enquanto o tempo todo corre
das constelações que piscaram
em tal desordem a entropia

da nossa profusão que pisca
e fica atrás desta esclerótica
que pra cada piscada morre

mas se dá conta neste instante
e no brando branco rabisca
este equívoco que ora escorre

11 de fevereiro de 2009


Aos pés do eruptivo
arranha-céu, a velhinha
tropeçou, caiu

e ralou-se toda. Mas
lá do alto ninguém viu.

10 de fevereiro de 2009

Poética


Estendera a mão
em vão; viraram-lhe a cara.
Resta à solevada

palma então pegar o nada;
de um gesto fazer um tanca.

6 de fevereiro de 2009

Cinismo



"O que quiser, peça-me!"
O grande assombrando o cão.
"Deixa-me o meu sol."

link da imagem: http://z.hubpages.com/u/362538_f520.jpg

4 de fevereiro de 2009

Nova poética


O que você acha
desta roupa nova que
o imperador traja?

2 de fevereiro de 2009


na sua corrente
mergulham galhos trementes
ausentes pra sempre

1 de fevereiro de 2009

Fruto

Eu cavo a terra e ouço
o eco do coito cão
do homem com o chão,
da voz dos pais dos pais
semeados: o ovo,
o aço do nosso ânimo,
seiva da plantação.

25 de janeiro de 2009

No fim chega, um dia,
a roda que gira e gira
no eixo que se queixa.